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sábado, 17 de outubro de 2015

A PELE DE ESAÚ, DE SILVÉRIO DUQUE: VISITAÇÕES



Eis alguns poemas de Silvério Duque (1978), poeta, crítico e professor de literatura, estabelecido em Feira de Santana, Bahia. A seleção abaixo foi selecionada de “A Pele de Esaú” (2010).
Um dos nossos poetas mais significativos do estado da Bahia, Silvério Duque nos lega um livro com significativa unidade temática e arejamento de forma: “A pele de Esaú”, revisitação meditativa da passagem bíblica de Esaú e Jacó. Este livro, prefaciado por Ildásio Tavares  e orelhas de Gustavo Felicíssimo,  divide-se em três partes, sendo que a última é composta por um único poema, um belíssimo soneto final em que o tema é condensado num todo. As partes mais extensas dividem-se num quadro amplo de contrição diante da presença inefável de Deus, em versos livres de feição bíblica (II parte) e o relato-evocação do episódio genesíaco numa coleção de sonetos decassílabos brancos, constituída na primeira parte.
Creio que “A Pele de Esaú” de Silvério Duque notabiliza-se pela urdidura em forma-conteúdo, enxuto enquanto dimensão da obra e cumpridor dos seus desígnios. Abaixo segue a seleção de seis poemas do volume, que embora seja uma visão pessoal, tenta, ao menos, oferecer uma dimensão breve da carga semântico-literária presente no livro. Entretanto, para isso, é necessário ler todos os poemas, tarefa essa que garanto ser prazerosa.

[ATO I – LAMENTAÇÕES]

***

Grande conforto esta visão da noite,
esta noite existente em cada ouvido,
qual o mar encarcerado em cada concha...
Há, em cada sonho, um anjo adormecido,

a despojar, da dor, toda verdade;
a mesma dor que nos revela as faces
que escondemos outrora em meio aos gritos.
E há, em cada despertar, o mesmo sonho,

do íncubo anjo, em seus olhos, revivido,
e, em seus olhos, o mesmo e estranho brilho
desta escada submersa e intermitente

entre as vagas, o Céu e a noite escura:
é a solidez das horas de Esaú –
hirsuto hebreu sem paz e sem lentilhas.

***
Canta, filha da luz da zona ardente,
o tempo emaranhado em seus retornos,
o amor crescendo à proporção das rotas,
o procriar tardio de tantas mortes...

Porque toda palavra é esquecimento
é preciso cantar: as mesmas pedras,
os mesmos grãos, a solidão da carne,
o chão, o pó, o horror, a cor, a vida,

os frutos que morreram no pé, voz
interrompida no soluço, a névoa,
a manhã debruçada ao sempre verde.

Pois o mesmo final está em tudo
e, em tudo, existe o mesmo aprendizado
– a mesma dor que vai tecendo os homens.

[ATO II – O EVANGELHO SEGUNDO NÓS MESMOS]

V

Senhor
abraça esta carne que eu encontrei banida
este espírito que eu recolhi entre os escombros
eu sou cada vez menos meu
Senhor
mas não faças de mim o que fizeste à pedra
que eu não sonhe os sonhos absurdos
onde Te decifras
não me mostres a terra dos longínquos desesperos
e depois me mata
aceito a cruz
o suor de sangue
a noite em claro no Jardim
é preciso tecer esta nova aurora
as coisas impossíveis
a luz amarga destes candelabros
mas
perdoa-me, Senhor
a cabeça entregue aos espinhos
a mão estirada ao prego
os olhos fitando a treva, a cegueira, o esquecimento
meu coração desejoso Te pede perdão...

VIII

Senhor
o Teu anjo e a Tua noite são terríveis
mas aqui redescubro as coisas
o vazio florescendo em minha pele
a nudez necessária destes versos
caminharei sozinho pelo mover das noites úmidas?!
o que sobrar de tudo será início...
em cada flor há uma pisada
na beleza há o trote ligeiro do tempo
a terra
a cinza
o pó
a sombra
o nada
o esquecimento
o Teu novelo
o Teu alinhavo
a Tua trama de desejos e limites, Senhor
trouxeste-me a Remédios onde me perco
e na aflição
novamente me reencontro...

IX
( penso no fogo e o fim de tudo
é pesado sobre os meus ombros
e, entre os silêncios mais esplêndidos
perdi meu nome... achei escombros

a vida, este sopro entre as cinzas
onde, na dor, Tu te divisas

vai se acabando, tudo passa
e o que deixarei para trás
não importa, tudo é ilusão

mas a alma, em vão, vê e deseja
a oração do tempo e esta igreja... )

[FINALE - REVELAÇÃO]

***

E sempre, em meu olhar, o mesmo rosto,
a mesma noite, o mesmo labirinto.
O anjo que eu vi cair, já recomposto,
evola-se na luz – Eu não o pressinto...?

Avistei-o, através deste sol-posto,
sob o livor da morte e meus instintos,
ardente e triste sobre os céus de agosto
como as coisas que vi e agora sinto,

pois maior é o Mistério à minha frente.
( Nesse vento indo e vindo pelas portas,
eu penso em Deus e nada está ausente... )

– Somos memória e a morte a todos corta,

meu irmão Esaú precito e crente,
mas só a visão de Deus é o que te importa.

(In: DUQUE, Silvério. A Pele de Esaú. Itabuna: Via Litterarum, 2010).