Eis alguns poemas de Silvério Duque
(1978), poeta, crítico e professor de literatura, estabelecido em Feira de
Santana, Bahia. A seleção abaixo foi selecionada de “A Pele de Esaú” (2010).
Um dos nossos poetas mais significativos do
estado da Bahia, Silvério Duque nos lega um livro com significativa unidade temática
e arejamento de forma: “A pele de Esaú”, revisitação meditativa da passagem
bíblica de Esaú e Jacó. Este livro, prefaciado por Ildásio Tavares e orelhas de Gustavo Felicíssimo, divide-se em três partes, sendo que a última é
composta por um único poema, um belíssimo soneto final em que o tema é
condensado num todo. As partes mais extensas dividem-se num quadro amplo de
contrição diante da presença inefável de Deus, em versos livres de feição
bíblica (II parte) e o relato-evocação do episódio genesíaco numa coleção de
sonetos decassílabos brancos, constituída na primeira parte.
Creio
que “A Pele de Esaú” de Silvério Duque notabiliza-se pela urdidura em
forma-conteúdo, enxuto enquanto dimensão da obra e cumpridor dos seus
desígnios. Abaixo segue a seleção de seis poemas do volume, que embora seja uma
visão pessoal, tenta, ao menos, oferecer uma dimensão breve da carga
semântico-literária presente no livro. Entretanto, para isso, é necessário ler
todos os poemas, tarefa essa que garanto ser prazerosa.
[ATO I – LAMENTAÇÕES]
***
Grande conforto esta visão
da noite,
esta noite existente em
cada ouvido,
qual o mar encarcerado em
cada concha...
Há, em cada sonho, um anjo
adormecido,
a despojar, da dor, toda
verdade;
a mesma dor que nos revela
as faces
que escondemos outrora em
meio aos gritos.
E há, em cada despertar, o
mesmo sonho,
do íncubo anjo, em seus
olhos, revivido,
e, em seus olhos, o mesmo e
estranho brilho
desta escada submersa e
intermitente
entre as vagas, o Céu e a
noite escura:
é a solidez das horas de
Esaú –
hirsuto hebreu sem paz e
sem lentilhas.
***
Canta, filha da luz da zona
ardente,
o tempo emaranhado em seus
retornos,
o amor crescendo à
proporção das rotas,
o procriar tardio de tantas
mortes...
Porque toda palavra é
esquecimento
é preciso cantar: as mesmas
pedras,
os mesmos grãos, a solidão
da carne,
o chão, o pó, o horror, a
cor, a vida,
os frutos que morreram no
pé, voz
interrompida no soluço, a
névoa,
a manhã debruçada ao sempre
verde.
Pois o mesmo final está em
tudo
e, em tudo, existe o mesmo
aprendizado
– a mesma dor que vai
tecendo os homens.
[ATO II – O EVANGELHO SEGUNDO NÓS MESMOS]
V
Senhor
abraça esta carne que eu
encontrei banida
este espírito que eu
recolhi entre os escombros
eu sou cada vez menos meu
Senhor
mas não faças de mim o que
fizeste à pedra
que eu não sonhe os sonhos
absurdos
onde Te decifras
não me mostres a terra dos
longínquos desesperos
e depois me mata
aceito a cruz
o suor de sangue
a noite em claro no Jardim
é preciso tecer esta nova
aurora
as coisas impossíveis
a luz amarga destes
candelabros
mas
perdoa-me, Senhor
a cabeça entregue aos
espinhos
a mão estirada ao prego
os olhos fitando a treva, a
cegueira, o esquecimento
meu coração desejoso Te
pede perdão...
VIII
Senhor
o Teu anjo e a Tua noite
são terríveis
mas aqui redescubro as
coisas
o vazio florescendo em
minha pele
a nudez necessária destes
versos
caminharei sozinho pelo
mover das noites úmidas?!
o que sobrar de tudo será
início...
em cada flor há uma pisada
na beleza há o trote
ligeiro do tempo
a terra
a cinza
o pó
a sombra
o nada
o esquecimento
o Teu novelo
o Teu alinhavo
a Tua trama de desejos e
limites, Senhor
trouxeste-me a Remédios
onde me perco
e na aflição
novamente me reencontro...
IX
( penso no fogo e o fim de
tudo
é pesado sobre os meus
ombros
e, entre os silêncios mais
esplêndidos
perdi meu nome... achei
escombros
a vida, este sopro entre as
cinzas
onde, na dor, Tu te divisas
vai se acabando, tudo passa
e o que deixarei para trás
não importa, tudo é ilusão
mas a alma, em vão, vê e
deseja
a oração do tempo e esta
igreja... )
[FINALE - REVELAÇÃO]
***
E sempre, em meu olhar, o
mesmo rosto,
a mesma noite, o mesmo labirinto.
O anjo que eu vi cair, já recomposto,
evola-se na luz – Eu não o pressinto...?
Avistei-o, através deste sol-posto,
sob o livor da morte e meus instintos,
ardente e triste sobre os céus de agosto
como as coisas que vi e agora sinto,
pois maior é o Mistério à minha frente.
( Nesse vento indo e vindo pelas portas,
eu penso em Deus e nada está ausente... )
– Somos memória e a morte a todos corta,
meu irmão Esaú precito e crente,
mas só a visão de Deus é o que te importa.
a mesma noite, o mesmo labirinto.
O anjo que eu vi cair, já recomposto,
evola-se na luz – Eu não o pressinto...?
Avistei-o, através deste sol-posto,
sob o livor da morte e meus instintos,
ardente e triste sobre os céus de agosto
como as coisas que vi e agora sinto,
pois maior é o Mistério à minha frente.
( Nesse vento indo e vindo pelas portas,
eu penso em Deus e nada está ausente... )
– Somos memória e a morte a todos corta,
meu irmão Esaú precito e crente,
mas só a visão de Deus é o que te importa.
(In: DUQUE, Silvério. A
Pele de Esaú. Itabuna: Via Litterarum, 2010).