I. 170
Foram dias estranhos, luz
na periferia
da luz, como se agora, e
lento, o corredor
do instante se esticasse
e deixasse supor,
senão um desenlace, uma
ante-sala fria
como a hora alongada que precede a agonia
do dia e desemboca aos
poucos num sabor
metálico, de papel de
estanho, uma anticor
de ocaso adivinhado, que
ainda mal se anuncia.
Esses dias de luz mais fria, como os lembro,
tinham de uma claridade
oblíqüa, fotográfica,
entre a nudez metálica e
a geometria errática:
Alexandria, abandonada membro a membro
a bacantes tardias,
sensualmente sádica,
cortava-nos ao vivo no
estanho de Setembro.
O soneto traz no seu contexto uma
sugestão de mudança refletida no sujeito poético, que o instigava e angustiava
os sentidos, além da conotação do tempo decorrido, do cromatismo das descrições
metálicas, amargas e adstringentes. Assim, dá-se o processo de focalização do
objeto em fotomemória evocativa do real, no substrato imaginado. Essa memória
contemplativa alimenta o tônus principal desse poema-livro de fôlego que é A Imitação do Amanhecer. Esse soneto
cabe no exemplo que se enquadra em todo o volume: um fluxo interior de uma
atmosfera dramática, em tentativa de preservação
de um passado em consonância com a mudança problematizadora do presente.
No soneto analisado, estranhamentos
tensos, sugeridos por “hora alongada” seguida de “desembocar aos poucos”, predominam
imagens que sugerem uma mudança gradual e renhida, reiterado também na sensação
dos sentidos entrecruzados, que é apresentado, por exemplo, na sinestesia “num sabor
metálico”. O sujeito poético busca a
utilização de todos os sentidos possíveis para atestar essa mudança, mesmo
sendo de belezas estranhas e impressionistas. As imagens de intenso brilho
permeiam todo o soneto, sugerindo uma aura de imobilizar o tempo no âmago do
eu-poético. Os versos são alexandrinos, a um modo muito particular do poeta,
uma vez que a presença dos versos metrificados é uma constante em Tolentino em
toda a sua obra.
Posso afirmar que Bruno Tolentino, na
reexperimentação dos dodecassílabos em língua portuguesa, rearranjou a
estrutura interior desse verso com o recurso da polirritmização. O verso
alexandrino clássico, da forma como o conhecemos, foi importado da França e
adaptado a nossa língua. No Brasil, o primeiro autor a usar o verso alexandrino
foi Machado de Assis, conferindo-lhe — com o decorrer do apogeu de reconhecimento
crítico a sua obra — o status
necessário para a afirmação do metro poético. No entanto, as versificações
dodecassilábicas obtiveram a primeira significativa mudança com Emiliano
Perneta, Alphonsus de Guimaraens e Francisca Júlia em finais do Século XIX. Esses
poetas deslocaram o acento rítmico binuclear
dos hemistíquios para a 4ª e 8ª sílabas. A polirritmização, ou seja, o uso
concomitante do verso dodecassílabo quaternário (também chamado de moderno),
com o alexandrino francês e o alexandrino espanhol deram uma fluência
extraordinária aos versos do livro A
imitação do amanhecer, que juntamente com as sequencias de enjambements, atingiu-se uma
comunicabilidade elástica de rara precisão. Uma vez fruído, são versos que
elevam o leitor a outro estado de percepção.
A exemplificação dessa técnica
desenvolvida por Bruno Tolentino (que não se confunde com a técnica de fazer
versos), na observação e leitura de diversos livros da poesia brasileira, é
conseguida através de muita meditação e convívio com as várias soluções verbais
e versificatórias possíveis. Além disso, são necessários muitos anos de
tentativa, convivência com os mestres de todos os tempos literários,
amadurecimento e conhecimento interior. Mesmo assim, julgo haver poucos
exemplos. Tais como em: Jorge de Lima (da Túnica Inconsútil, adiante), Carlos
Drummond da terceira fase (Claro enigma, Fazendeiro do Ar, A vida passada a
Limpo e Lição de Coisas), de alguns poemas dos poucos conhecidos Waldemar Lopes
e Abgar Renault e o terceiro Cassiano Ricardo (poesia do autor da década de
40).
Segue como exemplo também parte da obra
de Cecília Meireles, principalmente a da maturidade e Tasso da Silveira, (no
livro intitulado Puro Canto). Dos representantes da geração 60, podemos lembrar
dos poucos sonetos escritos por Orides Fontela, das Retrancas de Alberto da
Cunha Melo e quase a totalidade de poemas da obra de Alberto da Costa e Silva.
Outros exemplos? Por questão de espaço e num próximo momento poderemos mapear e
melhor definir o fenômeno. É uma poesia de procura de teor intemporal e se
trata de uma espécie poética em que fulge a essência da percepção da língua, de
fundo filosófico e refinamento do verso. Desse modo, o poema pode atingir um nível
transcendental que não se esgota e se afirma com o tempo.
A obra A Imitação do Amanhecer, de Bruno Tolentino, contém 539 sonetos,
escritos ao longo de 25 anos, precisamente entre 1979 e 2004. O livro composto
de três movimentos talvez seja o mais extenso livro single de sonetos da poesia brasileira recente, ultrapassando obras
como os Sonetos Completos de Gilberto
Mendonça Teles, com 217 peças e Todos os
Sonetos de Alphonsus de Guimaraens Filho, com 296 peças. Outros poetas até
ultrapassam o valor numeral de A Imitação
do Amanhecer, tendo como exemplo a obra Nau
de Urano de Nauro Machado, com 806 peças. Porém, neste caso, trata-se de
uma recolha de todos os sonetos publicados em livros entre 1958 e 2002. O mesmo
serve para os 1.194 sonetos de Luís Delfino (1834-1910), recolhidos em volume
único postumamente. Somando-se todas as peças dessa modalidade lírica, Bruno
Tolentino, em todos os seus livros, ultrapassa a conta de mil composições.
Nos dias atuais e no decorrer dos anos,
a poesia de Bruno Tolentino continuará uma seara de compreensão custosa — e
fascinante — pelas possibilidades de leitura e pela exigência de um leitor
experiente e devotado naquilo que o poeta deixou de legado para a nossa
posteridade. Em outro momento, pretendo também ocupar-me em elementos
encontráveis no volume As Horas de
Katharina (obra na qual creio que é a mais bem harmoniosa e convincente), A Balada do Cárcere e Anulação & Outros Reparos (livro de
estreia do poeta que recebeu o prêmio Revelação do autor 1960), do qual o júri
foi composto por Manuel Bandeira, Cassiano Ricardo e Ledo Ivo, e teve o
prefácio assinado pelo jovem José Guilherme Merquior.
No soneto apresentado — estrutura que é
ao mesmo tempo autônoma e perfaz um tecido de significado único — pela força
dos enjambements sugere um formato de
espiral sem ponto de início e fim em todo o livro. O sujeito poético trilha um
desvendamento por uma cidade universal e mítica, nos planos do real e do
imaginado em Alexandria. A representação condigna de desenvolver suas tensões
existenciais e filosóficas no desprendimento do passado e na observação e
aceitação dos substratos mutacionais da vida. Algo que é irremediavelmente
inerente a nossa natureza humana.