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sábado, 6 de outubro de 2012

UM SONETO DE BRUNO TOLENTINO


 
I. 170
Foram dias estranhos, luz na periferia
da luz, como se agora, e lento, o corredor
do instante se esticasse e deixasse supor,
senão um desenlace, uma ante-sala fria
   como a hora alongada que precede a agonia
do dia e desemboca aos poucos num sabor
metálico, de papel de estanho, uma anticor
de ocaso adivinhado, que ainda mal se anuncia.
   Esses dias de luz mais fria, como os lembro,
tinham de uma claridade oblíqüa, fotográfica,
entre a nudez metálica e a geometria errática:
  Alexandria, abandonada membro a membro
a bacantes tardias, sensualmente sádica,
cortava-nos ao vivo no estanho de Setembro.
 
(TOLENTINO, Bruno. A Imitação do amanhecer. Rio de Janeiro: Globo, 2006).

 

O soneto traz no seu contexto uma sugestão de mudança refletida no sujeito poético, que o instigava e angustiava os sentidos, além da conotação do tempo decorrido, do cromatismo das descrições metálicas, amargas e adstringentes. Assim, dá-se o processo de focalização do objeto em fotomemória evocativa do real, no substrato imaginado. Essa memória contemplativa alimenta o tônus principal desse poema-livro de fôlego que é A Imitação do Amanhecer. Esse soneto cabe no exemplo que se enquadra em todo o volume: um fluxo interior de uma atmosfera dramática, em tentativa de preservação de um passado em consonância com a mudança problematizadora do presente.

No soneto analisado, estranhamentos tensos, sugeridos por “hora alongada” seguida de “desembocar aos poucos”, predominam imagens que sugerem uma mudança gradual e renhida, reiterado também na sensação dos sentidos entrecruzados, que é apresentado, por exemplo, na sinestesia “num sabor metálico”. O sujeito poético busca a utilização de todos os sentidos possíveis para atestar essa mudança, mesmo sendo de belezas estranhas e impressionistas. As imagens de intenso brilho permeiam todo o soneto, sugerindo uma aura de imobilizar o tempo no âmago do eu-poético. Os versos são alexandrinos, a um modo muito particular do poeta, uma vez que a presença dos versos metrificados é uma constante em Tolentino em toda a sua obra. 

Posso afirmar que Bruno Tolentino, na reexperimentação dos dodecassílabos em língua portuguesa, rearranjou a estrutura interior desse verso com o recurso da polirritmização. O verso alexandrino clássico, da forma como o conhecemos, foi importado da França e adaptado a nossa língua. No Brasil, o primeiro autor a usar o verso alexandrino foi Machado de Assis, conferindo-lhe — com o decorrer do apogeu de reconhecimento crítico a sua obra — o status necessário para a afirmação do metro poético. No entanto, as versificações dodecassilábicas obtiveram a primeira significativa mudança com Emiliano Perneta, Alphonsus de Guimaraens e Francisca Júlia em finais do Século XIX. Esses poetas deslocaram o acento rítmico binuclear dos hemistíquios para a 4ª e 8ª sílabas. A polirritmização, ou seja, o uso concomitante do verso dodecassílabo quaternário (também chamado de moderno), com o alexandrino francês e o alexandrino espanhol deram uma fluência extraordinária aos versos do livro A imitação do amanhecer, que juntamente com as sequencias de enjambements, atingiu-se uma comunicabilidade elástica de rara precisão. Uma vez fruído, são versos que elevam o leitor a outro estado de percepção.

A exemplificação dessa técnica desenvolvida por Bruno Tolentino (que não se confunde com a técnica de fazer versos), na observação e leitura de diversos livros da poesia brasileira, é conseguida através de muita meditação e convívio com as várias soluções verbais e versificatórias possíveis. Além disso, são necessários muitos anos de tentativa, convivência com os mestres de todos os tempos literários, amadurecimento e conhecimento interior. Mesmo assim, julgo haver poucos exemplos. Tais como em: Jorge de Lima (da Túnica Inconsútil, adiante), Carlos Drummond da terceira fase (Claro enigma, Fazendeiro do Ar, A vida passada a Limpo e Lição de Coisas), de alguns poemas dos poucos conhecidos Waldemar Lopes e Abgar Renault e o terceiro Cassiano Ricardo (poesia do autor da década de 40).

Segue como exemplo também parte da obra de Cecília Meireles, principalmente a da maturidade e Tasso da Silveira, (no livro intitulado Puro Canto). Dos representantes da geração 60, podemos lembrar dos poucos sonetos escritos por Orides Fontela, das Retrancas de Alberto da Cunha Melo e quase a totalidade de poemas da obra de Alberto da Costa e Silva. Outros exemplos? Por questão de espaço e num próximo momento poderemos mapear e melhor definir o fenômeno. É uma poesia de procura de teor intemporal e se trata de uma espécie poética em que fulge a essência da percepção da língua, de fundo filosófico e refinamento do verso. Desse modo, o poema pode atingir um nível transcendental que não se esgota e se afirma com o tempo.

A obra A Imitação do Amanhecer, de Bruno Tolentino, contém 539 sonetos, escritos ao longo de 25 anos, precisamente entre 1979 e 2004. O livro composto de três movimentos talvez seja o mais extenso livro single de sonetos da poesia brasileira recente, ultrapassando obras como os Sonetos Completos de Gilberto Mendonça Teles, com 217 peças e Todos os Sonetos de Alphonsus de Guimaraens Filho, com 296 peças. Outros poetas até ultrapassam o valor numeral de A Imitação do Amanhecer, tendo como exemplo a obra Nau de Urano de Nauro Machado, com 806 peças. Porém, neste caso, trata-se de uma recolha de todos os sonetos publicados em livros entre 1958 e 2002. O mesmo serve para os 1.194 sonetos de Luís Delfino (1834-1910), recolhidos em volume único postumamente. Somando-se todas as peças dessa modalidade lírica, Bruno Tolentino, em todos os seus livros, ultrapassa a conta de mil composições.

Nos dias atuais e no decorrer dos anos, a poesia de Bruno Tolentino continuará uma seara de compreensão custosa ­­­— e fascinante — pelas possibilidades de leitura e pela exigência de um leitor experiente e devotado naquilo que o poeta deixou de legado para a nossa posteridade. Em outro momento, pretendo também ocupar-me em elementos encontráveis no volume As Horas de Katharina (obra na qual creio que é a mais bem harmoniosa e convincente), A Balada do Cárcere e Anulação & Outros Reparos (livro de estreia do poeta que recebeu o prêmio Revelação do autor 1960), do qual o júri foi composto por Manuel Bandeira, Cassiano Ricardo e Ledo Ivo, e teve o prefácio assinado pelo jovem José Guilherme Merquior. 

No soneto apresentado — estrutura que é ao mesmo tempo autônoma e perfaz um tecido de significado único — pela força dos enjambements sugere um formato de espiral sem ponto de início e fim em todo o livro. O sujeito poético trilha um desvendamento por uma cidade universal e mítica, nos planos do real e do imaginado em Alexandria. A representação condigna de desenvolver suas tensões existenciais e filosóficas no desprendimento do passado e na observação e aceitação dos substratos mutacionais da vida. Algo que é irremediavelmente inerente a nossa natureza humana.

2 comentários:

  1. Bela análise Poeta, de Bruno Tolentino. Vou falar um pouco da parte estrutural (que entendo mais), o que enxerguei no soneto 170 (já chama atenção aqui, cadê o título, me veio os sonetos de Shakespeare mas o formato mais aproximado é de um soneto petrarquiano. Uma estrutura base do soneto italiano, com liberdades da Poesia Moderna, em uma estrutura concreta: monostrófica. Tem uma mescla de escolhas de versos para a composição do soneto, realmente, como você bem disse. O alexandrino francês; o alexandrino espanhol; o trímero: peônio de 4 + peônio de 4 + coriambo - verso 12; verso com 13 sílabas - a ideia acima da regra (verso 7 - onde a segunda tônica está espaçada em 5 sílabas poéticas da primeira - aqui o anticlássico é notório - os segmentos melódicos, iambo + peônio de 4 + iambo + Peônio de 4, talvez a estrutura desejada, se quebra no 1 hemistíquio por serem tônicas a 2 e 7 e não 2 e 6 sílabas poéticas - no verso 10, também, temos 13 sílabas poéticas 7 + 6 - qual a relação entre os versos?). Várias combinações de versos e alguns cavalgamentos que encadeiam vários versos dos (supostos) quartetos e no terceto final os versos 12 e 13. O verso agudo, o aceitar da rima esdrúxula toante: fotográfica/ errática + metálica - verso 11 (incrível construção do alexandrino espanhol [ -UU-U-/UU/UUU-U-/UU ], onde a cesura épica do 1 hemistíquio faz coincidir as estruturas dos 2 hemistíquios - é como se tivéssemos dois versos hexassílabos acataléticos - formou-se 2 hemistíquios perfeitos no verso)/ sádica. Um dado na estrutura do soneto é interessante: Bruno Tolentino não abdicou da divisão perfeita, onde se vê claramente, a separação dos quartetos e dos tercetos, mesmo que ele conceba uma estrutura monostrófica ao soneto, nota-se através de um ponto final ao fim do oitavo verso. Outros sonetos modernos mais radicais, como o Soneto do Rei Obscuro de José Alcides Pinto criam cavalgamentos que se dão entre o 8 e 9 versos - fugindo por completo desta estrutura de divisão da construção de uma ideia (quartetos) e desfecho da ideia (tercetos). O encadeamento das rimas é interessante ABBAABBACDDCDC - nos tercetos (supostos) a estrutura é anticlássica (pensando nos mais usuais esquemas de rimas do soneto clássico), mas na primeira parte do poema é clássica ao estilo petrarquiano. E a rima é menos rígida com as classes gramaticais diferentes, o que dá maior amplitude para as ideias do texto. Era um tanto chata a paranoia das rimas com palavras de classes gramaticais distintas, se forem acrescentar ao soneto, tudo bem utilizá-las, senão, a palavra certa pede passagem. Deu a impressão de uma estrutura mais solta nos (supostos) quartetos e mais rígida nos (supostos) tercetos. É nítido o maior poder de renovação/experimentação dentro de uma estrutura clássica de soneto italiano do poeta moderno. É nítido o estudo do modelo clássico e a capacidade de Bruno Tolentino de conversar com a tradição e equilibrar os padrões clássicos com a maior liberdade do poema moderno. Não é uma máquina realizando versos, digo, o sujeito que aprende a contar sílabas poéticas ficou muito para trás. É o poeta amadurecido, conhecedor do ofício que nos lega este soneto. Bruno Tolentino está entre o limiar da renovação e uma tentativa de não perder a identidade do soneto, que em alguns poetas, pode levar ao nosso questionamento: ser ou não ser um soneto?

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    1. Caríssimo Alexandre Tambelli, gratíssimo pelas palavras de análise ao poema de Bruno Tolentino. Seu conhecimento técnico é admirável e seguro nas suas observações a face ‘formal’ do soneto tolentiniano. Considere, Alexandre, o poema de Bruno como soneto mesmo, com quartetos e tercetos definidos. As edições da Editora Globo (o que acontece com a seção da Imitação da Música o livro O Mundo como Ideia e de numerosos sonetos-sequenciais em Os Deuses de Hoje) são dispostos com a junção das estrofes com um afastamento do verso no início destas, por ser um ciclo-sequencia de sonetos, que funcionasse ao mesmo tempo como estrofes/poemas autônomos. Quando o soneto aparece sozinho, isolado, na obra do autor, dispõem-se com as estrofes separadas.
      Outro fator a comentar é a adoção principal, pelo autor, do verso alexandrino espanhol como padrão a ser seguido sempre quando possível (embora haja outros tipos desse verso). Esse verso tem como padrão a cesura após a sílaba final não-contada do primeiro hemistíquio, e isso podemos ver, por exemplo, em Antonio Machado, Gabriela Mistral, Gerardo Diego e Juan Ramón Jimenez (poetas da literatura de língua espanhola). Se a ideia poética – no contexto criador de Bruno – coincidisse com as outras disposições métrico-rítmicas, para Tolentino tal fator não se constituiria num problema. A parte formal no autor sempre foi algo subjacente à perseguição filosófico-proposicional do volume e de outras obras, embora a poesia de Bruno Tolentino viesse a utilizar largamente os versos isométricos. O enjambement e as rimas toantes é uma constante também em toda a obra. Um abraço Alexandre, muito obrigado pelas palavras, Claudio.

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